sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Reforma, Pentecostalismo e Star Trek



Quem me conhece sabe que sou meio nerd. Tá bom, bastante nerd. E um bom nerd que se preze sabe a diferença entre Star Wars e Star Trek.
Star Trek (antigamente conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas) era uma série de TV de ficção científica criada na década de 60 por Gene Rodenberry no auge da Guerra Fria e que contava as aventuras do capitão Kirk e sua tripulação multiétnica da nave estelar Enterprise “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”. A série original durou apenas 3 anos mas teve vários reprises, deu origem a diversas séries derivadas e a inúmeros filmes no cinema.
Star Wars (antes conhecida no Brasil como Guerra nas Estrelas), criada por George Lucas, é uma série de filmes para o cinema iniciada no final dos anos 70. Embora pareça ficção científica, na verdade é uma fantasia espacial que conta a saga da família Skywalker a partir de Anakin (que viria a se tornar no icônico vilão Dart Vader) e depois por seus filhos Luke e Leia. Já está no sétimo filme e uma legião de fãs aguarda ansiosamente o oitavo. Confundir uma série com a outra é quase uma ofensa pessoal para seus ardorosos fãs.
Talvez você não saiba, mas sou um trekker, isto é, um fã de Jornada nas Estrelas. Estou escrevendo este texto com minha miniatura da Enterprise em frente ao monitor e minha caneca de café com o rosto do capitão Kirk, senhor Spock e o dr. McKoy ao lado.
Mas o que isto tem a haver com Reforma e Pentecostalismo?
Neste ano, Star Trek comemora 50 anos do lançamento da série e muitos afirmam que o sucesso da série clássica se devia a forte química que havia entre os três personagens principais – aqueles da minha caneca. Mas mais tarde eu volto a este assunto.
Ano que vem serão comemorados os 500 anos da Reforma Protestante, cujo evento-marco foi a fixação por Martinho Lutero de 95 teses na porta da igreja de Wittenberg na Alemanha em 1517, mudando para sempre a história do cristianismo ocidental.
O protestantismo rompeu o monopólio da interpretação da Bíblia, defendeu a separação entre a Igreja e o Estado, e quebrou paradigmas ao retirar do sacerdote a mediação entre os homens e Deus proclamando o sacerdócio universal dos crentes. Seu fervor evangelístico e sua produção teológica levaram a se espalhar rapidamente não apenas na Europa mas em todos os continentes.
Porém, com o advento do Iluminismo e a hegemonia do pensamento racionalista, pouco a pouco, a teologia protestante foi se afastando de seu fervor inicial e de sua devoção à Bíblia como texto sagrado, até desaguar no século XIX em uma aversão ao sobrenatural e ao miraculoso que, muito contribuiu para o esfriamento espiritual de toda a Europa.
Além disto, neste ano de 2016 o Brasil sediará a 24a. Conferência Mundial Pentecostal, em São Paulo.
Embora já centenário, o pentecostalismo parece ser a antítese do protestantismo do início do século XX: espontâneo, popular, emocional mas, acima de tudo, fervorosamente aberto ao sopro do Espírito Santo. Hoje, não há dúvida de que o cristianismo que tem crescido no mundo, especialmente nos países pobres e em desenvolvimento, é o pentecostal. Mas nele também há senões.
Tanto nos EUA quanto no Brasil, o movimento pentecostal nasceu nas comunidades mais humildes, sendo rechaçado e discriminado pelas elites sociais e religiosas de seu tempo. Não é de se estranhar que seus pioneiros, especialmente no Brasil, tenham desenvolvido um forte anti-intelectualismo e, com base no que viam acontecer nas igrejas protestantes históricas, medo de que o estudo teológico viesse a enfraquecer a sua fé e a sua comunhão com Deus. Mas esta postura teve um alto preço. A falta de um arcabouço teológico mais profundo levou o pentecostalismo a se tornar um solo fértil para que surgissem algumas igrejas de forte radicalismo nos costumes e também para um misticismo não bíblico e até mesmo sincrético.
De um lado, uma igreja extremamente racional. De outro, uma igreja altamente emocional. Ambas mutuamente se estranhando, liturgicamente, teologicamente e culturalmente. E isto me lembra Star Trek.
Como citei no início do meu texto, a famosa série sessentista era composta por uma carismática trinca de personagens: o capitão Kirk, o oficial de ciências Spock e o médico da nave, dr. McKoy.
Um dos mais famosos personagens da cultura pop de todos os tempos, Spock era um extraterrestre do planeta Vulcano. Filho de pai vulcano e mãe terráquea, ele foi criado segundo a cultura vulcana na qual os sentimentos devem ser todos eliminados pois somente pela lógica se poderia suplantar a selvageria. Por isso, o personagem magistralmente interpretado pelo recentemente falecido Leonard Nimoy (quase) nunca sorria. O “quase” se deve ao fato de que, de fato, Spock tinha sentimentos, mas devido a sua cultura vulcana ele os escondia de todos. Sua frase mais famosa no seriado era saudação vulcana “vida longa e próspera”.
Por outro lado, o doutor McCoy era seu oposto: passional, irritadiço, falava o que lhe vinha à cabeça e com frequência se irritava com a frieza de Spock diante das mais desesperadoras situações. Eram momentos deliciosos na série clássica as birras e provocações mútuas entre os dois personagens.
Os dois eram os melhores amigos do capitão da USS Enterprise, James T. Kirk, o qual parecia ser a junção perfeita das melhores qualidades de ambos, alternando nos momentos certos a frieza necessária para tomar decisões com o envolvimento emocional com sua tripulação e demais pessoas que passaram pela série, tão importante para que se queira realmente ajudá-los em seus problemas. Não raro, Spock e McCoy se surpreendiam com a forma como o capitão Kirk conseguia salvar o dia no final de cada episódio.
Não é muito difícil associar o jeito vulcano de ser do oficial de ciências da Enterprise com o estilo formal, intelectualizado e um tanto frio das igrejas protestantes clássicas. De igual modo, é visível a passionalidade do dr. McCoy em muitas atitudes das igrejas pentecostais.
Creio que a igreja do século XXI tem de ser menos Spock e McCoy e ser mais Kirk, ou seja, ao invés de se criticarem mutuamente, deveriam aprender com a plenitude de Cristo a se tornarem mais equilibradas e centradas e, ao mesmo tempo, intelectualmente preparadas e calorosamente amorosas.

Afinal, estamos todos embarcados em um mesmo empreendimento (em inglês, enterprise) chamado Igreja, e não vai ser brigando uns com os outros que auxiliaremos nosso Eterno Capitão a levar a tripulação desta nave terrestre aos céus, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.