O
Charlie Hebdo é um pequeno jornal satírico semelhante ao finado
jornal brasileiro O Pasquim, de grande importância crítica na
época da ditadura militar que nosso país viveu. Bom, isto é o que
lemos e ouvimos na grande imprensa. Mas há diferenças. Grandes
diferenças.
A
França, diferente do Brasil, é um país com uma história milenar,
uma orgulhosa identidade nacional e um forte sentimento secularista
no Estado francês, uma tradição que tem origens na Revolução
Francesa. Mas o que isto teria a haver com o atentado? Muita coisa.
Como
disse, a França é um país orgulhoso de sua identidade, de sua
cultura. Isto é tão forte que chega a ser folclórico o costume dos
franceses não tratarem bem os turistas de outros países que lá vão
deixar seu rico dinheirinho mas não sabem se comunicar na língua de
Proust, Edit Piaf e Brigitte
Bardot. Se o povo francês não consegue ver com bons olhos o turista
estrangeiro que o visita, imagine o estrangeiro ou filho de
estrangeiro que vive lá e ousa manter as suas tradições?
Luc
Ferry, filósofo e ex-ministro da Educação da França, em
entrevista ao jornal O Globo, publicada no dia 25/01/2014, lá vivem
as maiores comunidades judias e muçulmanas da Europa: um milhão de
judeus e entre cinco e oito milhões de muçulmanos.
Estes
são grupos de forte tradição cultural e religiosa. Ou seja, não
se deixam assimilar pela cultura dominante de um país, o que
significa, manter e expor suas tradições, vestimentas, fé e até
mesmo língua publicamente. Portanto, são vistos com desconfiança e
até mesmo animosidade por uma razoável parcela da população. Sim,
há um forte componente xenófobo e até mesmo racista na sociedade
francesa. O crescimento de partidos de extrema-direita como o Frente
Nacional de Jean-Marie Le Pen é um exemplo disto. Mas por que há
tantos muçulmanos na França?
A
resposta está no colonialismo francês. A França colonizou – um
eufemismo para invadir, expropriar, sugar as riquezas locais e
levá-las para para Pais – diversos países africanos: Marrocos,
Argélia, Costa do Marfim, etc. Boa parte deles de população
muçulmana. Zidane, o grande jogador de futebol francês, é filho de
argelinos.
Alguns
destes países, como a Argélia, somente se tornaram independentes na
segunda metade do século XX! Mas o que a França não contava é que
a colonização gera um vínculo, um fluxo entre a metrópole e as
colônias e não só de matéria-prima para a indústria francesa.
Se a matriz leva as riquezas da colônia deixando-a na miséria, uma
parte da população da colônia vai até a matriz em busca desta
riqueza perdida na forma de melhores oportunidades. São os
imigrantes das antigas colônias francesas na África, quase todas
islâmicas. Mas não é isso que eles encontram.
Vivendo
em bairros pobres e sem acesso a boa educação e emprego, jovens de
origem árabe se sentem discriminados pelo resto da França que não
os entende e nem aceita que eles cultivem suas tradições seculares.
Em
meio a este barril de pólvora social, o jornal Charlie Hebdo publica
charges grosseiras e ofensivas à fé não apenas de muçulmanos no
distante Oriente
Médio, mas também de milhões de cidadãos franceses. Isto não
podia acabar bem.
Como
não podia deixar de ser, o chefe de redação do jornal francês
Charlie Hebdo, Gérard Biard, defendeu sua publicação das
caricaturas do profeta Maomé:
“Sempre
que fazemos um desenho de Maomé, de profetas ou de Deus, estamos
defendendo a liberdade religiosa”, disse Biard em entrevista à
emissora de TV norte-americana NBC
– a primeira concedida pelo
chefe de redação a uma emissora dos Estados Unidos desde o ataque
ao jornal, no último dia 7, no qual 12 pessoas foram mortas.
"Dizemos que Deus não deve ser uma figura
política ou pública, mas sim uma figura privada. Nós defendemos a
liberdade de religião”, afirmou Biard, ao defender que a religião
não deve servir como argumento político.”
Fonte: http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/chefe-de-redacao-do-charlie-hebdo-defende-charges-de-maome
Interessante.
Para ele, suas ofensas a religião dos outros é uma forma de
defender a liberdade religiosa! Fico imaginando como seria a sua
agressão à liberdade religiosa, então. Na prática, o Charlie
Hebdo não faz defesa de liberdade religiosa nenhuma. A chave para
entender a opinião de Gérard Biard está na frase "Dizemos que
Deus não deve ser uma figura política ou pública, mas sim uma
figura privada”. Ou seja, o jornal defende que o discurso religioso
seja privado, não público, isto é que fique preso, restrito às
quatro paredes das casas das pessoas, enquanto ele tem a liberdade de
publicar seu discurso anti-religioso. Liberdade de expressão? O pior
é que o governo francês concorda com ele.
Em
nome de uma pretensa liberdade de expressão, o Charlie Hebdo
praticou um verdadeiro ato de agressão contra a sensibilidade de
milhões de pessoas, atacando-as em suas crenças e valores. Mas esta
liberdade de expressão é falsa, ou melhor é de mão única. Em
2004 foi promulgada uma lei proibindo o uso de símbolos religiosos
em escolas públicas. Veja bem, a lei não está apenas proibindo a
presença de crucifixos nas paredes – o que é compreensível,
visto que o Estado é laico - mas sim que os próprios alunos não
entrem nas escolas se estiverem usando um kipá, um crucifixo ou um
shador. Na prática, a França proibiu milhões de pessoas de
exercerem a liberdade de expressarem a sua fé. Não estamos falando
de proselitismo religioso, mas sim de liberdade de expressão. Um
jornal é livre para ofender a fé de um jovem que não é livre para
ir à escola portando um crucifixo ou um véu islâmico.
Luc
Ferry acaba por deixar isso claro ao afirmar na entrevista que “a
França é a separação absoluta da religião e da política: a
laicidade é praticamente sagrada”. Chega a ser um
contrassenso. Na França o secularismo é
sagrado. O sagrado não é.
Aliás,
reparou que em todas as matérias publicadas na imprensa brasileira,
as charges nunca aparecem? Suponho que seja porque as charges são
realmente tão ofensivas,que dificilmente a maioria da população
brasileira concordaria com o uso da liberdade de expressão para
isso. Especialmente se vissem as charges contra a fé cristã. Se tem
estômago, veja alguns exemplos:
Se isto é liberdade de expressão, o Charlie Hebdo expressou seu preconceito religioso, sua discriminação e sua intolerância laica contra a fé milhões de pessoas, muitas delas abandonadas pelo Estado francês. Veja que os criticados nestas charges não são políticos ou os líderes dos grupos terroristas. Não há nesta seleção charges de Osama Bin Laden (embora eles tenham feito, sim), mas sim ataques às crenças de milhões de pessoas, tanto cristãs como muçulmanas. Na prática, o Charlie Hebdo praticou diversos atos de violência intelectual, mas nem todos os agredidos são como os cristãos que dão a outra face.
O
mundo ocidental ficou chocado com a reação violenta e injustificada
contra o jornal. E se fosse no Brasil? E se fosse um jornal
corintiano com charges neste estilo retratando palmeirenses? Alguém
acha que o resultado seria diferente?
Alguém defenderia no Brasil a liberdade
do jornal corintiano de expressar seu preconceito?
Então,
por que contra a fé de milhões de pessoas pode?
Para mais informações sobre a questão, sugiro os links abaixo:
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