Vi ontem o filme
Êxodo: Deuses e Reis, do consagrado diretor Ridley Scott (Blade
Runner, Alien, Gladiador, etc.) e apesar da exuberância visual, fica
um certo desapontamento no ar.
Scott tem sido um
diretor um tanto errático: seus filmes sempre nos enchem os olhos,
mas nem sempre a história é bem contada. Em Alien tudo deu certo.
Em Prometheus, sua continuação, ficou o gostinho de que ficou
faltando algo. Infelizmente, Êxodo está mais para Prometheus do que
para Alien. E isto tem tudo a haver com as alterações que o diretor
fez tanto na história bíblica quanto na história egípcia. Se você ainda não viu o filme e quer ver, leia o resto do texto por sua conta e risco: tem muitos spoilers neste artigo daqui para frente.
O filme começa de
forma convencional, mostrando a data de 1300 a.C. (a data atualmente
mais aceita para o Êxodo) narrando a escravidão dos hebreus no
Egito por 400 anos. Até aí tudo bem. Mas, de repente, aparece uma
cena de uma pirâmide sendo construída. Pirâmide? Em 1300 a.C.?
Naquela época não se construíam mais pirâmides, mas sim mastabas
– palácios funerários escavados na rocha, no famoso Vale dos
Reis.
Daí em diante o
filme segue a linha clássica da ficção hollywoodiana colocando
Moisés e Ramsés como dois amigos que se amam com irmãos, sendo
Moisés o predileto do Faraó. Você já viu isso antes, até mesmo
em desenhos animados. Lembra-se do Príncipe do Egito? E é aí que a
fraqueza do filme se acentua.
No filme, o velho
faraó Horemheb é enterrado em uma tumba monumental cuja entrada é
ladeada por estátuas de pedra gigantes. Eu conheço essa tumba... é o templo de Abu Simbel, construída por Ramsés II, quando ele era
faraó. Ou seja, ela não existia quando Horemheb morreu, portanto,
ele não foi sepultado lá. Então porque o filme tem esta cena
historicamente falsa? Porque o filme quis retratar Horemheb como um
faraó forte, poderoso e sábio como contraste a Ramsés II,
retratado como fraco, inseguro e traumatizado pela falta de
demonstração de amor paterno. O problema é que Ramsés não era
assim. Ele foi o maior e mais poderoso faraó que o Egito já teve,
construindo monumentos magníficos, vencendo os hititas na lendária
batalha de Kadesh. Ramsés II era extramente vaidoso e seguro de si,
bem ao contrário da representação feita no filme.
Se a figura de
Ramsés foi bastante modificada em relação ao que a história do
Egito registra, a de Moisés mantém pouca ou nenhuma relação com o
texto bíblico. O Moisés do filme é o clássico herói moderno: ético, porém cético, que parte por força das circunstâncias em
sua jornada solitária, lutando contra tudo e contra todos, até
mesmo contra Deus, e prevalecendo no final. Para satisfazer o gosto
popular, Moisés não é um velho: é jovem, não usa um cajado –
ele o deixa em Midiã com seu filho - mas sim uma espada egípcia! O
Moisés do filme não é um velho homem de fé, mas um um jovem
guerreiro confiante em suas capacidades.
Para que Moisés se
encaixe neste figurino trechos inteiro do relato de Êxodo tiveram de
ser desconsiderados:
1) na Bíblia Moisés
não é um herói idealizado, mas possui falhas de caráter: mata um
egípcio em uma briga e enterra o cadáver para não ser descoberto.
Quando descobrem o crime, foge para Midiã. No filme, Moisés mata um
soldado quando este descobre que ele é hebreu e volta normalmente
para o palácio. Ele não foge, protege Miriã e é expulso para o
deserto por ordem do faraó – bem mais nobre, porém bem mais
artificial e fantasioso.
2) no encontro com
Deus na sarça ardente, no livro do Êxodo Deus se revela como o Deus
de seus antepassados e lhe dá uma ordem detalhada do que ele deve
fazer para libertar seu povo do Egito. Inclusive lhe dá provas de
que estará com ele fazendo sinais com seu cajado. Já no filme, Deus
diz muito pouco, quase nada, de quem é e do quer que Moisés faça
para libertar seu povo. Pior: Moisés diz que é um pastor e Deus diz
que não precisa de um pastor, mas sim de um general. Como é?
Qualquer pessoa que tenha estudado minimamente a Bíblia sabe que o
padrão divino de liderança é o pastor de ovelhas – Moisés era
pastor, Davi era pastor, Jesus se apresentava como “o Bom Pastor”.
No Êxodo vemos Moisés pastoreando ovelhas no deserto durante 40
anos como uma espécie de preparação que Deus lhe dá para poder
guiar seu enorme povo pelo deserto e no filme, vemos Deus dizendo que
não quer um pastor de ovelhas?
3) Na Bíblia, o
velho Moisés reluta em aceitar a sua missão a ponto de irritar
Deus. No filme, aceita imediatamente. No texto bíblico, ele volta para o
Egito com esposa e filhos. No filme, ele volta sozinho. Na Bíblia,
ele faz sinais com seu cajado. No filme ele faz atentados com um
grupo guerrilheiro. Na Bíblia Moisés nunca viu o rosto de Deus,
embora conversasse com ele face a face. No filme, Deus sempre aparece
a Moisés como uma criança. Uma criança aparentemente mimada e sem
sentimentos mais profundos pelo povo hebreu.
Por que tantas
mudanças? Qual o seu objetivo ao descaracterizar assim não apenas a
Bíblia como a história egípcia? Diretores não resistem a tentação
de, ao filmarem histórias já contadas anteriormente, de darem o seu
toque pessoal ou, como eles dizem, a sua “visão” da história,
das metáforas e alegorias que elas encerrariam. Muitas vezes o
resultado é não apenas inferior como também uma descaracterização
da obra original. E qual teria sido a visão de Ridley Scott?
Acredito que o filme seja o retrato de nossa época. O homem moderno
sonha em ser como o Moisés do filme: senhor de si, guerreiro, forte,
autossuficiente, com seu próprio senso de justiça. Não há espaço
para um Deus Soberano sobre tudo e sobre todos, inclusive sobre a sua
vida mortal. E quando se defronta com esse Deus o vê como uma
criança mimada, uma poderosa criança mimada e caprichosa. Um Deus
com “d” minúsculo, diante do qual se pode irar, retrucar,
discutir. Um deus que 'um reflexo de si mesmo.
Já o Deus que o
livro do Êxodo descreveu no encontro com Moisés é diferente, bem
diferente. É um ser imaterial, sem forma, que não pode ser contido
ou ignorado. Que tem plena consciência de quem é: o Ser Perfeito e
Imutável, descrito no nome que se apresentou a Moisés: Ehyeh
Asher Ehyeh: Eu Sou o Que Sou (em hebraico: אֶהְיֶה
אֲשֶׁר אֶהְיֶה). O Ser infinitamente puro que disse a Moisés
quando este se aproximou no monte Horebe: “tira as sandálias dos
teus pés porque o lugar em que te encontras é uma terra santa.”
O Moisés do Êxodo
compreendeu a sua pequenez diante do Ser que o comissionava e diante
da missão para o qual era comissionado. Por isso foi escolhido. Ele
era apenas o instrumento, Deus era o ator por trás da história que
libertaria seu povo. O ceticismo e a vaidade de Ridley Scott não lhe
deixaram ver a riqueza e a veracidade da narrativa do Êxodo e o
forçaram a recontar a história de uma forma que fosse mais
palatável para uma plateia igualmente cética e vaidosa. Por isso
ele fracassou. Ao recontar a história de Moisés como um herói
idealizado, perdeu-se a dimensão humana do personagem. Falta emoção ao filme. Irônico: sua
vã tentativa de fazer uma descrição “verossível” do Êxodo,
resultou em um uso indiscriminado de mistificações, deturpações e omissões, as quais acabaram por mostrar como o velho texto bíblico, ao
descrever os personagens, suas falas e ações, é muito mais lógico,
isento e realista do que qualquer filme ou obra de ficção
posterior. Por quê? Porque descreve pessoas e fatos reais e não personagens idealizados. Obrigado,
Ridley!
Uma dica Ridley: ao
invés de ter contratado o Christian “Batman” Bale para o papel,
não teria sido melhor o Ian “Gandalf” McKellen? Não me leve a
mal, Christian Bale é um excelente ator. Mas imagine a cena: ao
invés do Moisés a cavalo e de espada na mão cavalgando sobre o
leito seco do Mar Vermelho, poderia estar pé de cajado na mão à la
Galdalf gritando para o exército do faraó: “You shall not pass!”
Que tal, hein? Não? Bom, deixa pra lá. Foi só uma sugestão.
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