quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Maconha: uma questão de saúde pública. Mais do que você imagina.


A maconha não faz isso. Mas a maioria das pessoas que chegou neste estágio começou com ela.

Ninguém em sã consciência nega que a questão das drogas é um grave problema de difícil solução. Quando pensamos em drogas, nos vem à mente diversos problemas originados de seu consumo tais como: dependência química, alteração de personalidade, crises de abstinência, perda do senso de realidade, agressividade, e criminalidade.

Mas apesar disto, há quem defenda a descriminalização ou mesmo a legalização de seu consumo, ao menos daquela que consideram a menos nociva delas: a maconha.

Como já afirmei em meu post Discussão ou imposição?, o discurso dos defensores desta proposta dá a entender que a sociedade brasileira tem se recusado a pensar em soluções alternativas para o caos que as drogas geram ao afirmarem que: “chegou a hora de discutir a legalização das drogas” ou “temos de deixar de hipocrisia e discutir a descriminalização das drogas”.

Há um eufemismo aí. Quando falam em “discutir a questão” não estão querendo falar em “debater a questão”, mas sim em “Vamos discutir como e em que ritmo vamos implantar a legalização das drogas”.

Mas vamos discutir a questão. De verdade. Sem eufemismos.

Um argumento muito usado pelos defensores da descriminalização do consumo de drogas é que esta “deve ser abordada como uma questão de saúde pública e não criminal”, que não se deve tratar como criminoso alguém que está doente.

Na verdade, a coisa começa como um crime – compra, posse e consumo de drogas –, que progride para uma doença – a dependência química decorrente deste consumo. Mas esqueçamos por enquanto a questão criminal e vamos tratar da questão de saúde. E se o assunto é esse, nada melhor do que ouvir um profissional da saúde – um médico, o doutor Joaquim Melo:

A teoria de substituir a criminalização das drogas por uma abordagem de saúde pública é frágil na prática. Não é realista pretender trocar uma pela outra, pois elas estão relacionadas e tem de ser complementares e não excludentes.
Pode ser que a descriminalização melhore as estatísticas de segurança, mas inevitavelmente vai multiplicar as dificuldades na saúde. Com o agravante de que essa abordagem deixa de combater a origem para remediar as causas, o que, em qualquer circunstância, prejudica os resultados e aumenta os custos.”
Fonte: Prudência com a maconha. Artigo publicado no jornal O Globo de 24/08/2013

Ele deve saber do que diz, afinal, o dr. Melo é presidente da Associação Brasileira do Estudo do Álcool e Outras Drogas. Neste artigo ele questiona a eficácia e mesmo a lógica de liberar o consumo de drogas leves como a maconha, quando governo e sociedade fazem um grande esforço no sentido contrário, na restrição cada vez maior ao consumo de cigarro e bebidas alcoólicas – com bons resultados.

Mas o doutor Melo também citou que a descriminalização fatalmente levaria a uma multiplicação de dificuldades na saúde. Por quê? A resposta vem da Inglaterra:

Especialistas alertam que o público perigosamente subestima os riscos de saúde ligados a fumar maconha.
A Fundação Britânica do Pulmão (BLF, na sigla em inglês) realizou um levantamento com mil adultos e constatou que um terço erroneamente acredita que a cannabis não prejudica a saúde.
E 88% pensavam incorretamente que cigarros de tabaco seriam mais prejudiciais do que os de maconha -- quando um cigarro de maconha traz os mesmos riscos de um maço de cigarros.
A BLF afirma quer a falta de consciência é "alarmante".
Um novo relatório do BLF diz que há ligações científicas entre fumar maconha e a ocorrência de tuberculose, bronquite aguda e câncer de pulmão.
O uso de cannabis também tem sido associado ao aumento da possibilidade de o usuário desenvolver problemas de saúde mental, como a esquizofrenia.
Parte da razão para isso, dizem os especialistas, é que as pessoas, ao fumar maconha, fazem inalações mais profundas e mantêm a fumaça por mais tempo do que quando fumam cigarros de tabaco.
Isso significa que alguém fumando um cigarro de maconha traga quatro vezes mais alcatrão do que com um cigarro de tabaco, e cinco vezes mais monóxido de carbono, diz a BLF.”

Segundo o dr. Melo, países que adotaram a descriminalização viram o consumo das drogas crescerem e com usuários que começavam a consumi-las cada vez mais cedo. Mais ainda: ele afirma que há estudos que apontam que parte destes novos usuários deve evoluir para o consumo de outras drogas, como o crack.
Ou seja, a solução proposta não vai resolver o problema, apenas mascarar sua faceta criminosa, mesmo que isto leve a um aumento exponencial de consumidores e – por consequência – dependentes que sobrecarregarão ainda mais o já combalido sistema de saúde do país.
A solução apresentada é muito conveniente. Se deixa de ser crime, pode ser consumido. Se for consumido por uma decisão livre do cidadão é um direito dele. Mas se o consumo gerar tudo o que já foi exposto acima: dependência, tuberculoze, câncer, esquizofrenia ou mesmo levar o indivíduo à cocaína e ao crack, aí a responsabilidade é do Estado que tem o dever de cuidar dele.
E aí vivemos o paraíso hedonista de nossos formadores de opinião: o indivíduo nunca é responsabilizado por seus atos e escolhas, ao contrário, é tratado como vítima do destino. O vilão é o governo que não tem hospitais e clínicas de recuperação suficientes, ou políticas públicas suficientes ou campanhas educativas suficientes.
Na verdade, já se está fazendo isso. Ao invés de se fazerem campanhas alertando para os perigos do consumo de drogas, fazem-se campanhas para vitimizar o usuário de drogas:

A carioca X-Tudo Comunicação Completa assina campanha de apoio ao projeto de lei pela descriminalização do usuário de drogas, que irá tramitar no Congresso.
Criada para a CBDD (Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia), com apoio da ONG carioca Viva Rio, a comunicação discute o tema a partir do bordão : “É justo isso?”.
A meta é reunir 1,3 milhão de assinaturas e apresentá-las no Congresso, em 2013.

Luana Piovani, Luiz Melo, Isabel Fillardis, Felipe Camargo, Jonathan Azevedo e Regina Sampaio, entre outros, protagonizam a campanha, e interpretam casos reais que aconteceram por causa de legislação que não difere o usuário do traficante. Também há a participação de dois defensores públicos, Rodrigo Pacheco e Daniel Nicory.
A comunicação conta com filmes para TV, anúncios para revista e jornal, spots para rádio e peças para internet.”

Ou seja: uma pessoa conscientemente decidiu comprar e consumir drogas, sabendo que isto é um crime. Algumas dessas pessoas compraram em grande quantidade seja para fazer um estoque próprio, seja para rachar com outros usuários, mas foram presas, julgadas e, algumas delas, condenadas. É justo isso? Sim, é justo, pois foi a escolha delas. Compraram e consumiram drogas sabendo de seus riscos. Não há porque tratá-las como vítimas, a não ser de si próprias.

Não é interessante? Se a campanha é contra o consumo não aparece nenhuma celebridade. Mas se a campanha é para legalizar ou coitadinhizar o usuário, aí não faltam nomes famosos. Isto acontece porque em nossos formadores de opinião glamurizam o alternativo, o marginal o outsider e tratam o correto e honesto como careta, conservador, retrógrado e burguês. O resultado é esta inversão de valores que vemos diariamente em nossa sociedade.

Mas deixemos de lado minha opiniões e voltemos a questões de saúde. Saúde mental. Qual a opinião do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor da Unifesp a respeito do impacto do consumo de maconha na mente de nossos jovens e adolescentes?

"Há quase 500 mil adolescentes usando maconha regularmente. Isso dá uma visão do tamanho do problema (...) e há um impacto do ponto de vista de saúde pública, desemprego e suicídio", explica.
Laranjeiras comentou ainda que, desde 2006, com a mudança da lei para despenalizar o uso de drogas, é possível que tenha ocorrido um aumento no consumo de maconha. Para ele, houve uma "frouxidão legislativa", que alterou a figura do usuário e impediu a pena de prisão com novas sanções alternativas.”

O professor Laranjeira tem base para fazer esta afirmação. Ele é um dos organizadores do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E ele também aponta as consequências neurológicas que esta frouxidão tem trazido para outros países:

"Nos EUA, a maior busca de dependentes químicos por tratamento hoje é de usuários de maconha. Dados da Nova Zelândia apontam que tem crescido o número de pessoas com transtornos psicóticos e esquizofrenia em decorrência do uso da maconha. Nenhuma outra droga causa esquizofrenia, e essa é a pior doença da psiquiatria. Quem vai cuidar dos 10% dos usuários expostos a esse risco? Quem é a favor da legalização deveria responder isso", diz Laranjeira.”
Legalizar o consumo significa facilitar o acesso. Sua consequência direta será a ampliação de usuários. Ainda mais em uma sociedade em que o consumo de maconha é retratado como algo libertário, descolado e moderno enquanto a abstenção é visto como algo conservador e careta. Ou seja, do ponto de vista imagético, é quase irresistível para um adolescente ou jovem resistir a um convite para “dar um tapinha”. Os mesmos que defendem a sua descriminalização são aqueles que constroem uma imagem sedutora de seu consumo. Se hoje temos no Brasil, segundo os estudos do Lenad, 3% da população adulta tendo consumido drogas no último ano, com a legalização poderemos chegar em pouco tempo ao nível de consumo dos EUA: 10% da população adulta. E o nosso já combalido sistema de saúde é que terá de arcar com isso. A "questão de saúde pública" se tornaria uma epidemia.
Os doutores Melo e Laranjeiras concordam que a descriminalização não ajuda em nada e vão além: parte da resposta está é no endurecimento no tratamento da questão – o que não significa absolutamente colocar usuário na cadeia:
Os países com menor consumo de maconha, como Suécia e Japão, têm mais rigor e restrições. A solução não é colocar os usuários na prisão, mas nesses lugares há uma certa intolerância com o consumo. Ou vamos por esse caminho ou liberamos e aumentamos o uso. Será que a minoria vai determinar e pautar o que a gente quer como sociedade?"

As políticas relativas às drogas lícitas, aliás, oferecem mais informações. Está claro o sucesso de medidas mais rígidas em relação ao cigarro, com diminuição expressiva no número de fumantes. Da mesma maneira, a Lei Seca apresentou inegáveis resultados positivos. Em ambos os casos, o raciocínio é o inverso das propostas sobre a maconha”.
Fonte: Prudência com a maconha. Artigo publicado no jornal O Globo de 24/08/2013

Sabemos que alguma pessoas tem uma maior predisposição à dependência química do que outras. Assim como há pessoas que consomem maconha sem se viciarem há também pessoas que não apenas criam dependência como aprofundam sua dependência consumindo outras drogas mais pesadas.

Ao descriminalizar o consumo de maconha para que uma parcela ínfima de pessoas descoladas possam ter o seu barato sem serem importunadas, corremos um risco real: o de facilitar o acesso a esta droga a um número muito maior de pessoas que carregam dentro de si, sem saberem, a predisposição genética à dependência química e a todas as desgraças que vem com ela. Aproveitando o tema da campanha pró-descriminalização, deixo uma pergunta no ar: é justo isso?

A saída não está na descriminalização do consumo de drogas. Está no abandono voluntário de seu consumo daqueles que fazem uso “recreativo” delas. As Sagradas Escrituras já mostravam o caminho:

Ora, nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação”. Rm 15.1

Para aqueles que se sentem injustiçados por terem de, pela força da lei, abrir mão de um prazer para que um desconhecido de organismo fraco não venha a se tornar um dependente químico, sugiro que veja isto por um outro ângulo. Não abra mão apenas por que a lei exige. Abra mão por que você se importa. Porque você é solidário. Abra mão porque a vida de um desconhecido é mais importante do que os minutos de relaxamento provocado por um vapor barato. Isto seria um grande ato de amor pela vida.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Primeiro capítulo de A Conspiração Gnóstica

Não sei se todos sabem, mas em fevereiro foi lançado meu primeiro livro de ficção, A Conspiração Gnóstica. Segue abaixo o primeiro capítulo dele:

I
BOAS LEMBRANÇAS E MÁS NOTÍCIAS

Éfeso, ano 85 d.C.

Eu já estava acordado quando o galo cantou.
Na minha idade, é normal deitar-se tarde e acordar cedo. Especialmente quando se vive em uma cidade tumultuada e barulhenta como Éfeso. Não deixa de ser irônico: justamente no período da vida que temos menos força em nossos membros, passamos mais tempo acordados. Certo estava Moisés quando escreveu — como era mesmo? “...a duração de nossa vida é de setenta anos, e se alguns, pela sua robustez chegam a oitenta anos, o melhor deles é canseira e enfado”...[1]
Tantos anos se passaram, mas ainda não me acostumei com o burburinho das grandes metrópoles. Luzes demais, gente demais, pecado demais. Ainda mais se você vive na maior cidade da costa oeste da Ásia. Por aqui, todos os dias passam caravanas e barcos de povos que em minha juventude eu nem sabia que existiam.
Sinto saudade, muita saudade, de minha cidade natal. Sinto falta de minha aldeia, Cafarnaum, do mar da Galileia, de meu pai, o velho Zebedeu.
Mas minha terra, tal como eu a conheci, não existe mais. Roma reprimiu a rebelião judaica com mão de ferro. Rios de sangue correram pelas ruas de Jerusalém e nem o Santo Templo escapou da vingança romana, como predisse meu Senhor:
“Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada”.[2]
São lembranças amargas que ainda doem neste velho coração judeu.
O galo cantou mais uma vez. Papias ainda dorme. Agradeço ao Senhor por me enviar este moço. Há muito que o vigor se foi do meu corpo e sua ajuda me tem sido valiosa nas mais corriqueiras tarefas do cotidiano. Não é muito esperto, é verdade, porém é deveras prestativo. Deus lhe pague todas essas beneficências para com este pobre velho, meu menino. Espero que seu discipulado junto a mim seja tão frutífero quanto foi o de Policarpo.
Com algum esforço, levanto-me do meu leito, tomo meu cajado e vou em direção à janela. Lentamente, o véu estrelado da noite dá lugar à luz do dia.
A luz resplandece nas trevas e as consome, revelando o que estava oculto. Cada nascer do sol que meus olhos cansados contemplam me recorda do verdadeiro amanhecer, quando Ele chegou. Como estava escrito:
“Mas a terra que foi angustiada não será entenebrecida. Ele envileceu, nos primeiros tempos, a terra de Zebulom e a terra de Naftali; mas, nos últimos, a enobreceu junto ao caminho do mar; além do Jordão, a Galileia dos gentios”.[3]
Galileia dos gentios. Não é um nome muito honroso, embora reconheça que seja apropriado. Minha terra, situada ao norte da Palestina, sofreu muita influência gentia e pagã, especialmente no período do exílio. Na época em que lá vivia, convivíamos também com a proliferação de rebeldes agitadores, os zelotes. Estávamos em densas trevas espirituais.
Mas eu, Yochanan, estava lá quando essas palavras proféticas se cumpriram. Vi esta luz, fui iluminado por ela e nunca mais fui o mesmo. Nele estava a vida, e a vida era luz dos homens. Quando o vi e ouvi suas palavras, sabia que era Ele. Sabia que era o escolhido. Somente não sabia que minha vida mudaria tanto.
Não fomos nós que fomos até Ele, mas sim Ele que veio até nós. Quando soube da prisão de João, o Batista, deixou Nazaré e foi morar em nossa aldeia, Cafarnaum. E a luz começou a brilhar. Ali Yeshua começou a pregar sua mensagem. Ainda me lembro de suas palavras:
“Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus”.[4]
Nunca ninguém havia falado como Ele antes. Não com tal autoridade e convicção. Mas, apesar disso, foram poucos os de Cafarnaum e de suas redondezas que o seguiram. Contudo, suas palavras arderam em alguns corações, inclusive no meu e no de meu irmão mais velho.
Estávamos nós dois às margens do mar da Galileia, juntamente com nosso pai, sentados no barco consertando as redes de pesca quando Ele passou e nos chamou. Yeshua nos chamou!
Eu era tão jovem... um rapazote, pouco mais que uma criança, mas sabia o que tinha de fazer: segui-lo, por onde quer que fosse. Todos nós sabíamos que era a coisa certa a fazer. Na verdade, saber não é a palavra correta. Sentíamos em nossos corações que devíamos segui-lo. E não apenas nós, mas nosso pai também entendeu e não fez objeção a nossa partida.
Ele era meu mestre, e eu seu talmidim, seu discípulo. Sim, eu também era um dos doze que o seguia.
Mas para mim, Ele era mais que um mestre, era um pai, alguém em quem eu podia me recostar e descansar. Ao seu lado não havia o que temer. Nunca houve dúvida ou temor em sua voz. Ele sabia exatamente o que fazia, o que dizia. Sim, nEle estava a vida. Não uma vida qualquer, mas a plenitude da vida. E a vida era luz dos homens. Mas as trevas não a compreenderam.
De repente, percebo que meus pensamentos me levaram de Éfeso a distante Palestina de 50 anos atrás. Quantas memórias um simples amanhecer pode nos trazer!
Deixando minhas memórias para trás, viro-me em direção a Papias e percebo que o moço já está acordando.
— Paz seja contigo, Papias. Dormiste bem?
— Paz seja contigo, apóstolo. Dormi muito bem, obrigado — respondeu Papias ainda sonolento
— Por favor, prepara a refeição matinal?
— Seria bom, meu rapaz. Ah, por favor! Chame-me apenas de presbítero, está bem? Não pretendo ser mais do que um simples ancião com alguma experiência para transmitir aos mais jovens.
— Como o senhor quiser. Ensinaram-me que aqueles que viram o Senhor Jesus e foram convocados por Ele para serem seus discípulos deveriam ser chamados de apóstolos. Mas se o senhor não faz questão, quem sou eu para discordar? — Disse-me o jovem com um sorriso.
E lá se foi ele a preparar nosso desjejum.
Mais um dia se inicia. Quais surpresas virão com ele?
Não demoraria muito para que eu descobrisse. Pouco tempo após a refeição matinal, ouço palmas à porta de minha casa. Quem seria e o que quereria com um pobre velho como eu?
— Presbítero, Demétrio e o diácono Diótrefes trouxeram alguns irmãos que desejam ver o senhor.
— Mande-os entrar Papias.
Pela porta da humilde casa, entra um grupo de cinco homens. Não tardo em reconhecer-lhes.
— Paz seja contigo, apóstolo.
— Amados Demétrio e Diótrefes, paz seja convosco! E seja também com os amados irmãos que vos acompanham e me dão a honra desta visita. Não é sempre que este pobre velho recebe os presbíteros das principais igrejas da Ásia a uma só vez. Infelizmente, não creio que seja este um bom sinal. Receio que pretendam me deixar a par de algo sério acerca da igreja, não é isso?
— É verdade, apóstolo. E fico feliz em constatar que sua mente se mantém não apenas lúcida como também aguçada. — Afirmou Gaio, um dos presbíteros que acompanham Demétrio.
— Meu amado Gaio, sou um presbítero como tu, não há necessidade de tratar-me como apóstolo.
— Perdoe-me por discordar, mas é justamente do apóstolo que precisamos neste momento, e você o último dos apóstolos vivos. Precisamos de você, João.
Havia uma certa gravidade na voz Gaio.
João. É pela forma grega de meu nome que sou conhecido, e não apenas eu. Desde que as Boas-Novas começaram a ser anunciadas também aos gentios, tivemos de abrir mão de nossa língua materna e utilizamos o grego para alcançar a todos os povos. Por isso fomos conhecidos por outros nomes: meu irmão Ya'akov, Tiago. Shim'on agora é conhecido como Pedro. Bar-Talmai e T'oma são Bartolomeu e Tomé. Mattityahu, Mateus. Taddai, como era mesmo? Ah, é mesmo: Tadeu. Até mesmo o nome dEle teve de ser convertido para o grego. Yeshua Hamashiach, Jesus Cristo. Mas confesso que não é fácil para minha velha mente pensar neles com seus nomes em grego. 
Aqui estou eu de novo, perdendo-me em meus pensamentos!
— Mas que anfitrião sou eu? Recebo visitas em minha própria casa e não tenho a delicadeza de oferecer ao menos uma bacia com água para vossos pés no melhor estilo judaico! Papias, por favor, traga uma jarra com água, meu filho.
Os presbíteros tentaram objetar que não havia necessidade, porém, gentilmente, os fiz perceber que fazia questão. Para mim, era muito importante manter viva minha identidade judaica e cristã.
Em poucos instantes Papias trouxe-me a bacia e a jarra e, enquanto despejava a água cristalina na bacia, abaixei-me para lavar os pés de nossos ilustres visitantes.
Não pude deixar de perceber o constrangimento deles com meu gesto e, confesso, me diverti com a sua reação. Porém, enquanto lavava seus pés, percebo uma mudança em seus semblantes. O constrangimento deu lugar a um profundo respeito e meu gesto trouxe-lhes a memória um ato ocorrido há tempos, do qual eu mesmo participei e tive a oportunidade de contar para eles. O Senhor Jesus lavou nossos pés, os meus e o de meus irmãos discípulos. Nossa reação não foi muito diferente da deles naquela época.
Após essa singela cerimônia, sentamos para enfim tratar do motivo daquela inesperada visita.
— Pois bem, meus amados. Em que posso ser útil?
— Ninguém melhor do que você para saber o quanto custou para que a Igreja do Senhor pudesse crescer e se espalhar por todo o Império Romano. Muitos irmãos e irmãs derramaram seu próprio sangue por amor a Cristo, sem negar o seu nome jamais. Estêvão foi o primeiro deles. — Começou a falar Gaio.
— “Homens dos quais o mundo não era digno”.[5] — Completou Demétrio.
— É verdade — disse eu — e entre eles estavam os apóstolos. Todos martirizados por amor a Cristo.
— Naquele tempo Satanás levantou adversários, que, embora poderosos e brutais, eram de fora de nossa comunidade. Mas hoje, ele mudou a tática. — A expressão de Gaio estava carregada.
— O que está querendo me dizer?
— Já ouviu falar de Cerinto?
— Na verdade, não.
— É um judeu que tem visitado nossas igrejas por toda a Ásia. E em todo o lugar que chega, lança as sementes da discórdia e da mentira.
— Como este tal Cerinto faz isso?
— Em seus sermões e ensinos, o tal homem tem contestado a doutrina dos apóstolos acerca da natureza, da pessoa e da própria divindade de Jesus.
Ao ouvir tal coisa, meu coração disparou não querendo crer no que estavam me contando.
— O que está me dizendo, Gaio?
— Este Cerinto está desviando a muitos do caminho, fazendo com que abandonem a sã doutrina e a Igreja.
— Sim, com muita astúcia e dissimulação, ele tem inserido suas heresias em nosso meio. — confirmou Demétrio.
— Mas que ensinos são esses? — Perguntei eu.
— João, ele prega que Jesus não é o Cristo. Que Cristo não poderia ter nascido, pois crê que a carne em si mesma é má, enquanto o espírito é bom, e que não é necessário a fé nEle para a salvação.
— Eu não posso acreditar em tal coisa!
— Mas há mais.  — Afirmou Gaio.
— Ainda há mais?
— Infelizmente, sim. Por meio de supostas revelações e de falsos sinais, afirma que após a ressurreição haveria um reino terreno de Cristo e que os homens habitando em Jerusalém estariam sujeitos a desejos e prazeres, e que as celebrações nupciais durariam mil anos. Disse ainda...
— Chega, chega! Não quero, não suporto ouvir mais nada acerca deste anticristo! — ponho-me de pé, profundamente perturbado.
— Quem este Cerinto pensa que é para ensinar tamanhas loucuras? Por acaso estava lá quando Ele surgiu na Galileia? Ele o viu curar um paralítico e dar vista ao cego? Ele o viu sentir sede e fome? Ele o viu ressurgir dos mortos após a sua morte na cruz? Ele o viu subir aos céus? Não! Ele não viu nada disso, mas eu vi, eu estava lá e testifico: vi a sua glória como o unigênito do Pai, Jesus é o Cristo, Jesus é Deus!
Meu coração estava acelerado e minhas mãos, trêmulas. Que tempos, meu Deus, que tempos! Depois de tantos anos de sacrifício, suportando toda a sorte de perseguição e injúria, quando penso que a Igreja do Senhor vai finalmente crescer em paz, alicerçada nas Escrituras, surge mais uma ameaça.
O pobre Papias assustou-se com meu arroubo de indignação e, sem saber muito o que fazer, trouxe-me um copo de água a fim de me acalmar. Bebo-o a um só gole, e me sento para me refazer.
— Por favor, apóstolo, acalme-se. Sabemos como o senhor deve estar se sentindo. — Gaio fala mansamente, tentando me acalmar.
— Não, meus amados, vocês não sabem como me sinto, não tem como saber. Não estavam lá. Não viram nem ouviram o Filho de Deus.
— O senhor está certo. Não estávamos lá, mas você estava. Por isso viemos aqui. João, a Igreja de Cristo precisa de seu apóstolo. Ela precisa de você.
A gravidade na voz de Demétrio desarmou minha resistência.
— Mas o que querem de mim?
— Você é o último dos apóstolos vivos. Todos os outros já morreram. Precisamos do seu testemunho para combater tais heresias, João. Fale ao povo, conte à igreja o que você viu e ouviu.
— Meus amados irmãos, não creio que haja necessidade para tal. Temos os escritos de Lucas e dos demais acerca da vida de Jesus, temos as epístolas de Paulo, não são suficientes?
— Perdoe-me a ousadia, mas se fossem Cerinto não teria enganado a tantos.
Não tive mais argumentos para rebater o pedido deles. Gaio está certo. As Escrituras não são mais suficientes. Não poderei mais me esconder atrás de minha velhice. Não há tempo a perder.
Levantei-me mais uma vez, desta vez com uma postura firme e uma decisão tomada.
— Está bem, meus irmãos. Demétrio, convoque a toda a igreja de Éfeso. Daqui a dois dias será o Dia do Senhor. Neste dia, no culto da noite, falarei ao povo.
Um sopro de alívio e contentamento encheu os presbíteros quando concordei em falar à igreja.
— E o que você irá falar, João?
— Contarei uma história, Gaio. Contarei uma história.


Convido a todos a visitarem o hot site do livro: http://www.cpad.com.br/hotsites/conspiracao/

[1] Sl 90.10
[2] Mc 13.2
[3] Is 9.1               
[4] Mt 4.17
[5] Hb 11.38

domingo, 7 de abril de 2013

Marco Wyllys ou Jean Feliciano?



Levei um bom tempo antes de meter a minha colher neste imbróglio envolvendo Marco Feliciano, Jean Wyllys e a Comissão de Diretos Humanos da Câmara dos Deputados.
Vamos primeiro aos fatos: Na partilha que ocorre dentro do regimento interno da Câmara, coube ao PSC indicar um nome para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). Indicaram o nome do deputado Marco Feliciano. Colocado em votação, seu nome foi aprovado.

Quais são as atribuições da Comissão de Direitos Humanos e Minorias?

A Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) é uma das 20 comissões permanentes da Câmara dos Deputados, onde atua como órgão técnico constituído por 18 deputados membros e igual número de suplentes, apoiada por um grupo de assessores e servidores administrativos.
Suas atribuições constitucionais e regimentais são receber, avaliar e investigar denúncias de violações de direitos humanos; discutir e votar propostas legislativas relativas à sua área temática; fiscalizar e acompanhar a execução de programas governamentais do setor; colaborar com entidades não-governamentais; realizar pesquisas e estudos relativos à situação dos direitos humanos no Brasil e no mundo, inclusive para efeito de divulgação pública e fornecimento de subsídios para as demais Comissões da Casa; além de cuidar dos assuntos referentes às minorias étnicas e sociais, especialmente aos índios e às comunidades indígenas, a preservação e proteção das culturas populares e étnicas do País.

Porém, ato contínuo a nomeação de Feliciano, irados protestos eclodiram na própria Comissão e em diversos setores da sociedade se manifestaram contra a nomeação do deputado Marco Feliciano. Desde o início dos protestos, muitos dos quais obstruindo as sessões na Comissão, se projetou o nome do também deputado Jean Wyllys.

Mas qual a razão de tanto celeuma?

A Comissão de Comissão e Justiça da Câmara dos depurados era presidida e tinha a maioria de seus integrantes deputados que compartilhavam da mesma visão para esta área: a defesa do aborto com um direito da mulher, a descriminalização e a liberação do consumo de drogas como uma ação de redução de danos e a defesa dos interesses dos grupos GLBT organizados.

O deputado Marco Feliciano apesar de membro ativo da referida comissão com diversas proposições efetuadas, não comunga com a visão acima. Pior ainda: é um pastor evangélico e como tal, visto como um adversário e não como um colega na defesa dos direitos humanos.

O que parecia ser um típico caso de preconceito contra evangélicos ganhou novo contornos quando foram divulgadas postagens do deputado e pastor Marco Feliciano na rede social Twitter interpretados como racistas e homofóbicos. Seguem abaixo alguns deles:

Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isto é fato. O motivo da maldição é a polêmica. Não sejam irresponsáveis twitters rss.”

Qdo falei este assunto aqui, os ativistas gays quase me lincharam. Qdo associei AIDS à homossexualidade fui duramente confrontado.”

os artistas são a favor do casamento gay; os intelectuais também são. Resta aos cristãos e conservadores de valores morais lutarem.”

E piorou mais ainda com a divulgação de vídeos onde o pastor reclama de um fiel que doou o cartão de crédito sem a senha:

É a última vez que eu falo. Samuel de Souza doou o cartão, mas não doou a senha. Aí não vale. Depois vai pedir o milagre pra Deus e Deus não vai dar e vai falar que Deus é ruim.”

A repercussão de seus comentários levou a diversas personalidades a se manifestarem a respeito da inconvenciência de Marco Feliciano como presidente da CDHM:


"É algo que se insere no âmbito do Congresso Nacional, mas que, com toda a evidência, não se trata de uma indicação adequada. Acho que o próprio partido deve perceber que há pessoas mais vocacionadas para esse trabalho." Roberto Gurgel, procurador-geral da República,


O pastor Feliciano jamais poderia assumir a Comissão de Direitos Humanos. Ele é despreparado e não tem os princípios básicos que essa comissão precisa. Ele não tem condições mesmo. Eu não gosto quando a questão fica religiosa, ela é uma discussão de cultura de direitos humanos, coisa que o deputado não tem. Não interessa se ele é evangélico” Marina Silva, ex-senadora e ex-ministra do meio ambiente.

Ele se antagonizou com o Brasil porque expressou pelo Twitter e, depois, num culto, opiniões sobre a questão dos negros. Disse que são descendentes da parte amaldiçoada dos filhos de Noé, os filhos de Cam. É interessante observar ele não criou nada ao fazer tais afirmações. Essa teologia é muito antiga, muito anterior a ele, persistindo até hoje em alguns poucos segmentos fundamentalistas. Ela tem origem entre os colonialistas, que dividiam o mundo em três áreas – o ocidente, o oriente e o sul. Nesta última teriam ficado os possíveis descendentes do personagem bíblico, os amaldiçoados.” Ricardo Gondim, pastor da igreja Assembleias de Deus Betesda e escritor.

Porém, não apenas Marco Feliciano tem feito uso duvidoso das redes sociais. O deputado Jean Wyllys tem postado comentários tão preconceituosos quanto, porém direcionados a cristãos:

Confesso que o mais difícil, nos tweets dos fundamentalistas, é ter de ler a redação típica de um analfabeto funcional… É dose!”

Eu mereço essa gente que dissemina ódio aos homossexuais e às religiões de matriz africana e que não quer oposição a essa estupidez?”

Chama a atenção que os tweets de Feliciano ganharam a grande imprensa, enquanto os de Wyllys se restringiram à imprensa online evangélica. Jornalismo tendencioso dos grande órgãos de imprensa?

Uma outra questão não dita mas presente subliminarmente é a crença de que a Comissão de Direitos Humanos não é um espaço para diálogo e discussão plural mas sim, uma plataforma para imposição ao restante do Congresso de pensamento único e totalitário, sem espaço para outras visões a respeito do mesmo problema.

Resumindo: na opinião deste segmento, somente pode participar e presidir a comissão quem pensa rigorosamente igual a eles. E este totalitarismo ficou patente na forma como protestaram contra a presidência de Feliciano, literalmente impedindo as seções.

O jornalista Alexandre Garcia toca o dedo nesta ferida em seu programa de rádio:
Se ele é acusado de opinião, então é de supor que aqui no Brasil exista crime de opinião, e não existe. Ele não pode ser acusado de opinião, porque a opinião é livre e protegida pela Constituição.”

Já o ministro do STF Joaquim Barbosa expressou sua opinião:
"O deputado Marco Feliciano foi eleito pelos seus pares para assumir um determinado cargo dentro do Congresso Nacional, na Câmara. Os deputados assim o fizeram porque está prevista regimentalmente essa possibilidade. A sociedade tem também o direito de se exprimir, como vem se exprimindo, contrariamente à presença dele neste cargo. Isso é democracia".

Resumindo: os grupos ditos progressistas querem a renúncia de Feliciano não pelo o que ele disse no Twitter, mas por suas ideias conservadoras. Eles sabem que com ele na presidência, muitas de suas proposições podem ir para a fundo da gaveta da Comissão e temem a ideia de Feliciano de por a questão do casamento gay e da descriminalização do aborto em votação plebiscitária pois, no fundo, sabem que a sociedade brasileira é progressista da boca pra fora e conservadora no seu íntimo. Na verdade, Marco Feliciano já começou a fazer isso. No link abaixo podem ser conferidas no site da Câmara dos Deputados as proposições feitas por Feliciano, muitas delas feitas meses antes de assumir a presidência da CDHM:

Portanto, o que está em jogo é disputa por poder dentro de uma comissão onde um grupo perdeu a hegemonia e não poderá mais impor seu ponto de vista acerca dos diretos humanos sobre o outro, muito menos sobre o Congresso. Claro, o risco é que o novo grupo hegemônico faça a mesma coisa.

O resultado disto é o acirramento de ânimos de ambos os lados, com um lado querendo a renúncia de seu deputado desafeto por “crime de opinião”. Jean Wyllys e Marco Felicianmo são pintados ao mesmo tempo como monstros e mártires.

Mas quem são Marco Feliciano e Jean Wyllys e como se tornaram deputados federais, membros do Congresso Brasileiro?

Marco Feliciano começou sua meteórica carreira como um entre tantos pregadores pentecostais. Membro da igreja Assembleia de Deus, graças ao seu estilo eloquente e emocional, ganhou grande e rápida popularidade e era convidado a pregar em eventos religiosos de todo o país. Em pouco tempo já havia sido consagrado ao pastorado em uma igreja local.

Ao alcançar o sucesso dentro de seu meio, Feliciano começou a mudar o visual, buscando uma aparência mais moderna e menos convencional que caracterizam os pregadores pentecostais, geralmente bastante sóbrios.

Logo Feliciano fundou sua própria igreja – Assembleia de Deus Catedral do Avivamento, lançou Cd's como cantor e criou seu próprio currículo de revistas de Escola Dominical – investimentos estes que aparentemente não obtiveram grande aceitação no mercado.
Mas estes fatos, especialmente sua mudança visual, geraram rejeições em seu público e os convites para pregações começaram a rarear. Nesta época, ele chegou a gravar um vídeo pedindo para ser convidado a pregar.

Após isto, Feliciano fez o que muitas celebridades fazem quando chegam ao ostracismo: se candidatam a um cargo eletivo na esperança de que seus fãs os ajudem a serem eleitos.

Marco Feliciano foi bem sucedido em sua empreitada. Foi eleito com expressivos 211.855 votos em São Paulo.

Jean Wyllys era professor universitário na Bahia e alcançou a fama instantânea quando participou – e ganhou com expressiva votação (na casa dos milhões) – uma das edições do discutível reality show Big Brother Brasil no melhor estilo Davi contra Golias. Naquela edição, o pequeno e franzino baiano era sistematicamente enviado ao paredão pelo grupo dos rapazes e moças sarados e descerebrados que caracterizam o programa. E a cada vez ele voltava mais forte derrotando um a um, pois o público vê o o reality Show como uma novela e nelas, sempre torce pelo mais fraco e mais perseguido.

O tempo passou, Jean lançou um livro de memórias, e depois caiu no ostracismo. Foi candidato a deputado federal pelo PSOL mas não conseguiu o número mínimo de votos
para se eleger, apenas 13.018 votos.

Mas conseguiu a vaga no Congresso Nacional graças ao recurso do voto na legenda. Graças a lei eleitoral, o PSOL pode transferir votos “excedentes” da legenda os candidatos de seu partido – entre eles Jean Wyllys – e assim, “furar a fila” colocando-os à frente de outros candidatos mais votados do que eles.

De certa forma a história se repete. Do alto de seus votos e de seu visual metrossexual, Feliciano entrou pela porta da frente do Congresso enquanto Wyllys, metaforicamente, entrou pela porta dos fundos, empurrado pelos votos de sua legenda. Mas a batalha midiática está sendo ganha por Jean Wyllys por larga vantagem: mais equilibrado em seus comentários ena defesa de seu ideário, ele como fruto da mídia de massa sempre contou com seu apoio, mesmo antes da polêmica da CDHM. Já Marco Feliciano somente ganha os holofotes quando escreve ou fala alguma coisa polêmica que o coloca em dificuldades ainda maiores. E ele é pródigo em fazer isso.

Por trás de toda esta polêmica, Marco Feliciano e Jean Wyllys, duas celebridades midiáticas que chegaram ao Planalto sem nenhum passado de atividade política, são exemplos de como nosso sistema eleitoral e a própria consciência política da população estão em níveis perigosamente baixos. Embora em campos ideológicos opostos, eles são mais parecidos do que eles próprios e seus eleitorados gostariam de admitir.

Marco Feliciano acerta quando afirma que o fato de ser um pastor não o desqualifica para a CDHM. Ainda mais quando lembra a grande contribuição para a causa dos Direitos Humanos de outros pastores, como o bispo anglicano Desmond Tutu da África do Sul e o pastor batista americano Martin Luther King.

Infelizmente, Marco Feliciano está à léguas de distância da envergadura moral e intelectual destes dois gigantes da fé.

A jornalista Míriam Leitão percebeu isto:

As novas denominações religiosas evangélicas, pentecostais ou não, têm níveis de formação diferenciados com mais ou menos teoria. Alguns bem improvisados. Mas os que têm aparecido com mais destaque na imprensa são os grupos que cometem erros como os da exploração da fé dos mais pobres, ou os que fazem sustentações doutrinárias controversas.
As religiões precisam se modernizar de forma geral. Mas as denominações protestantes tradicionais, e os evangélicos que não comungam com as ideias do deputado Feliciano, têm dado pouca ênfase à necessária separação entre joio e trigo.”

Se a comunidade evangélica quiser ser ouvida e respeitada, precisa dar voz a homens e mulheres que tenham um real compromisso com a causa do Mestre, que não busquem holofotes para si e que tenham uma vida de tal integridade que sustente as suas afirmações e convicções. E para isto, a representação política é apenas uma das opções. Tanto Desmond Tutu quanto Martin Luther King nunca ocuparam cargos públicos, mas influenciaram e mudaram suas gerações.

A comunidade evangélica, por tudo o que fez e tem feito pelo ser humano, pode e deve estar presente na Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Ela tem muito sim, a contribuir com a sua experiência em apoio a dependentes químicos, prostitutas, moradores de rua e comunidades rurais. Mas ela precisa ter representantes à sua altura. Ainda não tem.


"Vós sois o sal da terra; e, se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta, senão para se lançar fora e ser pisado pelos homens (Mateus 5.13)."

sábado, 16 de março de 2013

Meia Liberdade de Expressão

Qual das manifestações acima o TJD ameaça censurar?

 
No início deste mês ocorreu um fato que não ganhou muita repercussão nos meios de comunicação. Jefferson, goleiro do Botafogo, será alvo de análise no Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-RJ) para ver se cabe denúncia contra o jogador. O motivo? Seu corte de cabelo.

Segundo matéria publicada no Lancenet, o goleiro do Botafogo, que costuma raspar o cabelo - está sendo investigado porque deixou um pequena parte de seu cabelo cuidadosamente cortada formando o discreto desenho de um peixe.

O problema é que não é um peixe qualquer, mas um símbolo religioso. Antes de tudo, um símbolo que representa Jesus desde a época que o Império Romano perseguia os cristãos. Como ser cristão naquela época era um risco de vida e não se sabia em quem podia se confiar, cristãos quando conversavam com alguém que desconfiavam que compartilhava da mesma fé, desenhavam no chão um peixe. Se o interlocutor também desenhasse outro peixe, era o sinal de que ele entendera o código e, portanto, também era cristão.

Mas qual a ligação de Jesus Cristo com um peixe? A palavra grega para peixe é ikhtus (ΙΧΘΥΣ) e ela seria um acróstico de Ἰησοῦς Χριστός, Θεοῦ Υἱός, Σωτήρ (Iesous Khristos Theos uios Soter) ou seja, cada letra da palavra peixe em grego seria a inicial das palavras que formam a frase “Jesus Cristo Filho de Deus Salvador".
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jesus#Nomes_e_t.C3.ADtulos_de_Jesus

Com o passar dos séculos e o fim da perseguição romana o símbolo deixou de ser um código secreto e se popularizou. Hoje, ele é também o símbolo da Associação Atletas de Cristo, a qual Jefferson faz parte.

Mas qual por quê o referido goleiro deveria ser julgado por um tribunal desportivo? A matéria do Lancenet explica:

De acordo com as regras da International Football Association Board, entidade ligada à Fifa, e que é responsável pelas regras do futebol, é proibida qualquer manifestação religiosa por parte dos jogadores dentro de campo. Segundo o artigo que trata do assunto, o jogador que infringir estas regras será penalizado pela organização do campeonato. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva também não aceita estas manifestações.
fonte: Link: http://www.lancenet.com.br/minuto/desenho-TJD-oferecer-denuncia-Jefferson_0_877112356.html

Ou seja, aparentemente, o goleiro cristão está errado ao desobedecer uma regra da Fifa e do Código Brasileiro de Defesa Desportista, certo? A meu ver, não. Acima destas instituições, está a Constituição Brasileira que afirma o seguinte acerca da liberdade de expressão:

Artigos da Constituição Brasileira de 1988 relacionados com a liberdade de expressão

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

V – o pluralismo político

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e a propriedade, nos termos seguintes:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença

Art. 220º A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.


Fonte: http://solteapalavra.com.br/?p=156

Mas o que o próprio Jefferson acha desta questão?

“- Vou deixar como está. Não estou prejudicando ninguém. Exageraram. Eu já tinha feito isso em outros jogos e não falaram nada. Esse é o símbolo dos Atletas de Cristo, nos identificamos com isso. Cada um expressa a fé como quiser. Não quis polemizar nada. Tem gente que comemora gol com gesto de arma e ninguém fala nada - disse Jefferson.”
Link: http://www.lancenet.com.br/botafogo/polemica-cabeca-Jefferson-prejudicando-ninguem_0_877712287.html

Isto é interessante. Não está vedada toda e qualquer manifestação ou expressão em campo, apenas as religiosas. Um jogador de futebol pode dar cambalhotas, imitar um animal, dançar, ou mesmo, como citou Jefferson, gesticular como se estivesse dando tiros de fuzil ou disparando um arco e flecha. A única coisa que ele não pode fazer é demonstrar devoção. Qual a lógica desta censura?

Como eu já havia escrito em artigo “Estado Laico ou estado Ateu?”:

“Pessoas tentam proibir a utilização de símbolos religiosos ou mesmo a cercear o direito de expressão baseadas em fé, não apenas em repartições governamentais, mas em qualquer espaço público.

A restrição a exposição religiosa e até mesmo da manifestação de opinião baseada em motivações religiosas em nome de um pretenso respeito a minorias de outras religiões ou mesmo não-religiosas é uma falácia. Seu objetivo é restringir toda e qualquer atividade religiosa à vida privada e, no máximo, às quatro paredes dos templos.”

Link: http://www.comunicarteei.blogspot.com.br/2011/07/estado-laico-ou-estado-ateu.html

Todos sabem que futebol é muito mais do que um esporte, é um negócio bilionário e a FIFA não quer que o DNA evangelístico do cristianismo atrapalhe os negócios em países claramente laicos como alguns da Europa e da Ásia comunista ou fundamentalistas islâmicos, como muitos do Oriente Médio e África.

Esta regra não tem haver com um ideal de laicismo mas unicamente com negócios. Entidades esportivas ganham muito, mas muito dinheiro com direitos de transmissão de imagens e não querem correr o risco de perderem a audiência destes países devido a postura autoritária de seus governantes de proibirem populações inteiras de saberem que pessoas em outros países tem a liberdade de crerem e manifestarem publicamente a sua fé. Como Jesus disse: “A verdade vos libertará”.

Jogadores de futebol, embora sejam atletas, são tratados como escravos. São comprados e vendidos feito mercadorias. E mercadorias não pensam, não creem e não se expressam.

Mas jogadores de futebol não são escravos, tampouco mercadorias. Antes de serem profissionais da bola são homens, isto é, seres humanos. E além disto, são brasileiros e a Constituição Brasileira, que garante o direito de outros homens expressarem publicamente o seu apoio com faixas e cornetas a descriminação do uso de drogas ou a morte de seres humanos ainda no ventre de suas mães, garante a eles o direito de expressarem publicamente a sua fé.

Ainda que seja na forma de um discreto peixe desenhado na lateral de uma cabeça careca.