Não sei se todos sabem, mas em fevereiro foi lançado meu primeiro livro de ficção, A Conspiração Gnóstica. Segue abaixo o primeiro capítulo dele:
I
I
BOAS LEMBRANÇAS E MÁS NOTÍCIAS
Éfeso, ano 85 d.C.
Eu já estava acordado quando o galo cantou.
Na minha idade, é normal deitar-se tarde e acordar cedo. Especialmente quando se vive em uma cidade tumultuada e barulhenta como Éfeso. Não deixa de ser irônico: justamente no período da vida que temos menos força em nossos membros, passamos mais tempo acordados. Certo estava Moisés quando escreveu — como era mesmo? “...a duração de nossa vida é de setenta anos, e se alguns, pela sua robustez chegam a oitenta anos, o melhor deles é canseira e enfado”...[1]
Tantos anos se passaram, mas ainda não me acostumei com o burburinho das grandes metrópoles. Luzes demais, gente demais, pecado demais. Ainda mais se você vive na maior cidade da costa oeste da Ásia. Por aqui, todos os dias passam caravanas e barcos de povos que em minha juventude eu nem sabia que existiam.
Sinto saudade, muita saudade, de minha cidade natal. Sinto falta de minha aldeia, Cafarnaum, do mar da Galileia, de meu pai, o velho Zebedeu.
Mas minha terra, tal como eu a conheci, não existe mais. Roma reprimiu a rebelião judaica com mão de ferro. Rios de sangue correram pelas ruas de Jerusalém e nem o Santo Templo escapou da vingança romana, como predisse meu Senhor:
“Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada”.[2]
São lembranças amargas que ainda doem neste velho coração judeu.
O galo cantou mais uma vez. Papias ainda dorme. Agradeço ao Senhor por me enviar este moço. Há muito que o vigor se foi do meu corpo e sua ajuda me tem sido valiosa nas mais corriqueiras tarefas do cotidiano. Não é muito esperto, é verdade, porém é deveras prestativo. Deus lhe pague todas essas beneficências para com este pobre velho, meu menino. Espero que seu discipulado junto a mim seja tão frutífero quanto foi o de Policarpo.
Com algum esforço, levanto-me do meu leito, tomo meu cajado e vou em direção à janela. Lentamente, o véu estrelado da noite dá lugar à luz do dia.
A luz resplandece nas trevas e as consome, revelando o que estava oculto. Cada nascer do sol que meus olhos cansados contemplam me recorda do verdadeiro amanhecer, quando Ele chegou. Como estava escrito:
“Mas a terra que foi angustiada não será entenebrecida. Ele envileceu, nos primeiros tempos, a terra de Zebulom e a terra de Naftali; mas, nos últimos, a enobreceu junto ao caminho do mar; além do Jordão, a Galileia dos gentios”.[3]
Galileia dos gentios. Não é um nome muito honroso, embora reconheça que seja apropriado. Minha terra, situada ao norte da Palestina, sofreu muita influência gentia e pagã, especialmente no período do exílio. Na época em que lá vivia, convivíamos também com a proliferação de rebeldes agitadores, os zelotes. Estávamos em densas trevas espirituais.
Mas eu, Yochanan, estava lá quando essas palavras proféticas se cumpriram. Vi esta luz, fui iluminado por ela e nunca mais fui o mesmo. Nele estava a vida, e a vida era luz dos homens. Quando o vi e ouvi suas palavras, sabia que era Ele. Sabia que era o escolhido. Somente não sabia que minha vida mudaria tanto.
Não fomos nós que fomos até Ele, mas sim Ele que veio até nós. Quando soube da prisão de João, o Batista, deixou Nazaré e foi morar em nossa aldeia, Cafarnaum. E a luz começou a brilhar. Ali Yeshua começou a pregar sua mensagem. Ainda me lembro de suas palavras:
“Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus”.[4]
Nunca ninguém havia falado como Ele antes. Não com tal autoridade e convicção. Mas, apesar disso, foram poucos os de Cafarnaum e de suas redondezas que o seguiram. Contudo, suas palavras arderam em alguns corações, inclusive no meu e no de meu irmão mais velho.
Estávamos nós dois às margens do mar da Galileia, juntamente com nosso pai, sentados no barco consertando as redes de pesca quando Ele passou e nos chamou. Yeshua nos chamou!
Eu era tão jovem... um rapazote, pouco mais que uma criança, mas sabia o que tinha de fazer: segui-lo, por onde quer que fosse. Todos nós sabíamos que era a coisa certa a fazer. Na verdade, saber não é a palavra correta. Sentíamos em nossos corações que devíamos segui-lo. E não apenas nós, mas nosso pai também entendeu e não fez objeção a nossa partida.
Ele era meu mestre, e eu seu talmidim, seu discípulo. Sim, eu também era um dos doze que o seguia.
Mas para mim, Ele era mais que um mestre, era um pai, alguém em quem eu podia me recostar e descansar. Ao seu lado não havia o que temer. Nunca houve dúvida ou temor em sua voz. Ele sabia exatamente o que fazia, o que dizia. Sim, nEle estava a vida. Não uma vida qualquer, mas a plenitude da vida. E a vida era luz dos homens. Mas as trevas não a compreenderam.
De repente, percebo que meus pensamentos me levaram de Éfeso a distante Palestina de 50 anos atrás. Quantas memórias um simples amanhecer pode nos trazer!
Deixando minhas memórias para trás, viro-me em direção a Papias e percebo que o moço já está acordando.
— Paz seja contigo, Papias. Dormiste bem?
— Paz seja contigo, apóstolo. Dormi muito bem, obrigado — respondeu Papias ainda sonolento
— Por favor, prepara a refeição matinal?
— Seria bom, meu rapaz. Ah, por favor! Chame-me apenas de presbítero, está bem? Não pretendo ser mais do que um simples ancião com alguma experiência para transmitir aos mais jovens.
— Como o senhor quiser. Ensinaram-me que aqueles que viram o Senhor Jesus e foram convocados por Ele para serem seus discípulos deveriam ser chamados de apóstolos. Mas se o senhor não faz questão, quem sou eu para discordar? — Disse-me o jovem com um sorriso.
E lá se foi ele a preparar nosso desjejum.
Mais um dia se inicia. Quais surpresas virão com ele?
Não demoraria muito para que eu descobrisse. Pouco tempo após a refeição matinal, ouço palmas à porta de minha casa. Quem seria e o que quereria com um pobre velho como eu?
— Presbítero, Demétrio e o diácono Diótrefes trouxeram alguns irmãos que desejam ver o senhor.
— Mande-os entrar Papias.
Pela porta da humilde casa, entra um grupo de cinco homens. Não tardo em reconhecer-lhes.
— Paz seja contigo, apóstolo.
— Amados Demétrio e Diótrefes, paz seja convosco! E seja também com os amados irmãos que vos acompanham e me dão a honra desta visita. Não é sempre que este pobre velho recebe os presbíteros das principais igrejas da Ásia a uma só vez. Infelizmente, não creio que seja este um bom sinal. Receio que pretendam me deixar a par de algo sério acerca da igreja, não é isso?
— É verdade, apóstolo. E fico feliz em constatar que sua mente se mantém não apenas lúcida como também aguçada. — Afirmou Gaio, um dos presbíteros que acompanham Demétrio.
— Meu amado Gaio, sou um presbítero como tu, não há necessidade de tratar-me como apóstolo.
— Perdoe-me por discordar, mas é justamente do apóstolo que precisamos neste momento, e você o último dos apóstolos vivos. Precisamos de você, João.
Havia uma certa gravidade na voz Gaio.
João. É pela forma grega de meu nome que sou conhecido, e não apenas eu. Desde que as Boas-Novas começaram a ser anunciadas também aos gentios, tivemos de abrir mão de nossa língua materna e utilizamos o grego para alcançar a todos os povos. Por isso fomos conhecidos por outros nomes: meu irmão Ya'akov, Tiago. Shim'on agora é conhecido como Pedro. Bar-Talmai e T'oma são Bartolomeu e Tomé. Mattityahu, Mateus. Taddai, como era mesmo? Ah, é mesmo: Tadeu. Até mesmo o nome dEle teve de ser convertido para o grego. Yeshua Hamashiach, Jesus Cristo. Mas confesso que não é fácil para minha velha mente pensar neles com seus nomes em grego.
Aqui estou eu de novo, perdendo-me em meus pensamentos!
— Mas que anfitrião sou eu? Recebo visitas em minha própria casa e não tenho a delicadeza de oferecer ao menos uma bacia com água para vossos pés no melhor estilo judaico! Papias, por favor, traga uma jarra com água, meu filho.
Os presbíteros tentaram objetar que não havia necessidade, porém, gentilmente, os fiz perceber que fazia questão. Para mim, era muito importante manter viva minha identidade judaica e cristã.
Em poucos instantes Papias trouxe-me a bacia e a jarra e, enquanto despejava a água cristalina na bacia, abaixei-me para lavar os pés de nossos ilustres visitantes.
Não pude deixar de perceber o constrangimento deles com meu gesto e, confesso, me diverti com a sua reação. Porém, enquanto lavava seus pés, percebo uma mudança em seus semblantes. O constrangimento deu lugar a um profundo respeito e meu gesto trouxe-lhes a memória um ato ocorrido há tempos, do qual eu mesmo participei e tive a oportunidade de contar para eles. O Senhor Jesus lavou nossos pés, os meus e o de meus irmãos discípulos. Nossa reação não foi muito diferente da deles naquela época.
Após essa singela cerimônia, sentamos para enfim tratar do motivo daquela inesperada visita.
— Pois bem, meus amados. Em que posso ser útil?
— Ninguém melhor do que você para saber o quanto custou para que a Igreja do Senhor pudesse crescer e se espalhar por todo o Império Romano. Muitos irmãos e irmãs derramaram seu próprio sangue por amor a Cristo, sem negar o seu nome jamais. Estêvão foi o primeiro deles. — Começou a falar Gaio.
— “Homens dos quais o mundo não era digno”.[5] — Completou Demétrio.
— É verdade — disse eu — e entre eles estavam os apóstolos. Todos martirizados por amor a Cristo.
— Naquele tempo Satanás levantou adversários, que, embora poderosos e brutais, eram de fora de nossa comunidade. Mas hoje, ele mudou a tática. — A expressão de Gaio estava carregada.
— O que está querendo me dizer?
— Já ouviu falar de Cerinto?
— Na verdade, não.
— É um judeu que tem visitado nossas igrejas por toda a Ásia. E em todo o lugar que chega, lança as sementes da discórdia e da mentira.
— Como este tal Cerinto faz isso?
— Em seus sermões e ensinos, o tal homem tem contestado a doutrina dos apóstolos acerca da natureza, da pessoa e da própria divindade de Jesus.
Ao ouvir tal coisa, meu coração disparou não querendo crer no que estavam me contando.
— O que está me dizendo, Gaio?
— Este Cerinto está desviando a muitos do caminho, fazendo com que abandonem a sã doutrina e a Igreja.
— Sim, com muita astúcia e dissimulação, ele tem inserido suas heresias em nosso meio. — confirmou Demétrio.
— Mas que ensinos são esses? — Perguntei eu.
— João, ele prega que Jesus não é o Cristo. Que Cristo não poderia ter nascido, pois crê que a carne em si mesma é má, enquanto o espírito é bom, e que não é necessário a fé nEle para a salvação.
— Eu não posso acreditar em tal coisa!
— Mas há mais. — Afirmou Gaio.
— Ainda há mais?
— Infelizmente, sim. Por meio de supostas revelações e de falsos sinais, afirma que após a ressurreição haveria um reino terreno de Cristo e que os homens habitando em Jerusalém estariam sujeitos a desejos e prazeres, e que as celebrações nupciais durariam mil anos. Disse ainda...
— Chega, chega! Não quero, não suporto ouvir mais nada acerca deste anticristo! — ponho-me de pé, profundamente perturbado.
— Quem este Cerinto pensa que é para ensinar tamanhas loucuras? Por acaso estava lá quando Ele surgiu na Galileia? Ele o viu curar um paralítico e dar vista ao cego? Ele o viu sentir sede e fome? Ele o viu ressurgir dos mortos após a sua morte na cruz? Ele o viu subir aos céus? Não! Ele não viu nada disso, mas eu vi, eu estava lá e testifico: vi a sua glória como o unigênito do Pai, Jesus é o Cristo, Jesus é Deus!
Meu coração estava acelerado e minhas mãos, trêmulas. Que tempos, meu Deus, que tempos! Depois de tantos anos de sacrifício, suportando toda a sorte de perseguição e injúria, quando penso que a Igreja do Senhor vai finalmente crescer em paz, alicerçada nas Escrituras, surge mais uma ameaça.
O pobre Papias assustou-se com meu arroubo de indignação e, sem saber muito o que fazer, trouxe-me um copo de água a fim de me acalmar. Bebo-o a um só gole, e me sento para me refazer.
— Por favor, apóstolo, acalme-se. Sabemos como o senhor deve estar se sentindo. — Gaio fala mansamente, tentando me acalmar.
— Não, meus amados, vocês não sabem como me sinto, não tem como saber. Não estavam lá. Não viram nem ouviram o Filho de Deus.
— O senhor está certo. Não estávamos lá, mas você estava. Por isso viemos aqui. João, a Igreja de Cristo precisa de seu apóstolo. Ela precisa de você.
A gravidade na voz de Demétrio desarmou minha resistência.
— Mas o que querem de mim?
— Você é o último dos apóstolos vivos. Todos os outros já morreram. Precisamos do seu testemunho para combater tais heresias, João. Fale ao povo, conte à igreja o que você viu e ouviu.
— Meus amados irmãos, não creio que haja necessidade para tal. Temos os escritos de Lucas e dos demais acerca da vida de Jesus, temos as epístolas de Paulo, não são suficientes?
— Perdoe-me a ousadia, mas se fossem Cerinto não teria enganado a tantos.
Não tive mais argumentos para rebater o pedido deles. Gaio está certo. As Escrituras não são mais suficientes. Não poderei mais me esconder atrás de minha velhice. Não há tempo a perder.
Levantei-me mais uma vez, desta vez com uma postura firme e uma decisão tomada.
— Está bem, meus irmãos. Demétrio, convoque a toda a igreja de Éfeso. Daqui a dois dias será o Dia do Senhor. Neste dia, no culto da noite, falarei ao povo.
Um sopro de alívio e contentamento encheu os presbíteros quando concordei em falar à igreja.
— E o que você irá falar, João?
— Contarei uma história, Gaio. Contarei uma história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário