segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Liberdade de Expressão - SQN


 

O mundo viu estarrecido o ataque de uma célula terrorista à redação do jornal francês Charlie Hebdo. Diversas pessoas mortas, entre elas alguns de seus principais cartunistas. Por quê tanta violência gratuita?


O Charlie Hebdo é um pequeno jornal satírico semelhante ao finado jornal brasileiro O Pasquim, de grande importância crítica na época da ditadura militar que nosso país viveu. Bom, isto é o que lemos e ouvimos na grande imprensa. Mas há diferenças. Grandes diferenças.

A França, diferente do Brasil, é um país com uma história milenar, uma orgulhosa identidade nacional e um forte sentimento secularista no Estado francês, uma tradição que tem origens na Revolução Francesa. Mas o que isto teria a haver com o atentado? Muita coisa.

Como disse, a França é um país orgulhoso de sua identidade, de sua cultura. Isto é tão forte que chega a ser folclórico o costume dos franceses não tratarem bem os turistas de outros países que lá vão deixar seu rico dinheirinho mas não sabem se comunicar na língua de Proust, Edit Piaf e Brigitte Bardot. Se o povo francês não consegue ver com bons olhos o turista estrangeiro que o visita, imagine o estrangeiro ou filho de estrangeiro que vive lá e ousa manter as suas tradições?

Luc Ferry, filósofo e ex-ministro da Educação da França, em entrevista ao jornal O Globo, publicada no dia 25/01/2014, lá vivem as maiores comunidades judias e muçulmanas da Europa: um milhão de judeus e entre cinco e oito milhões de muçulmanos.

Estes são grupos de forte tradição cultural e religiosa. Ou seja, não se deixam assimilar pela cultura dominante de um país, o que significa, manter e expor suas tradições, vestimentas, fé e até mesmo língua publicamente. Portanto, são vistos com desconfiança e até mesmo animosidade por uma razoável parcela da população. Sim, há um forte componente xenófobo e até mesmo racista na sociedade francesa. O crescimento de partidos de extrema-direita como o Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen é um exemplo disto. Mas por que há tantos muçulmanos na França?

A resposta está no colonialismo francês. A França colonizou – um eufemismo para invadir, expropriar, sugar as riquezas locais e levá-las para para Pais – diversos países africanos: Marrocos, Argélia, Costa do Marfim, etc. Boa parte deles de população muçulmana. Zidane, o grande jogador de futebol francês, é filho de argelinos.

Alguns destes países, como a Argélia, somente se tornaram independentes na segunda metade do século XX! Mas o que a França não contava é que a colonização gera um vínculo, um fluxo entre a metrópole e as colônias e não só de matéria-prima para a indústria francesa. Se a matriz leva as riquezas da colônia deixando-a na miséria, uma parte da população da colônia vai até a matriz em busca desta riqueza perdida na forma de melhores oportunidades. São os imigrantes das antigas colônias francesas na África, quase todas islâmicas. Mas não é isso que eles encontram.

Vivendo em bairros pobres e sem acesso a boa educação e emprego, jovens de origem árabe se sentem discriminados pelo resto da França que não os entende e nem aceita que eles cultivem suas tradições seculares.

Em meio a este barril de pólvora social, o jornal Charlie Hebdo publica charges grosseiras e ofensivas à fé não apenas de muçulmanos no distante Oriente Médio, mas também de milhões de cidadãos franceses. Isto não podia acabar bem.

Como não podia deixar de ser, o chefe de redação do jornal francês Charlie Hebdo, Gérard Biard, defendeu sua publicação das caricaturas do profeta Maomé:

“Sempre que fazemos um desenho de Maomé, de profetas ou de Deus, estamos defendendo a liberdade religiosa”, disse Biard em entrevista à emissora de TV norte-americana NBC – a primeira concedida pelo chefe de redação a uma emissora dos Estados Unidos desde o ataque ao jornal, no último dia 7, no qual 12 pessoas foram mortas.
"Dizemos que Deus não deve ser uma figura política ou pública, mas sim uma figura privada. Nós defendemos a liberdade de religião”, afirmou Biard, ao defender que a religião não deve servir como argumento político.”

Interessante. Para ele, suas ofensas a religião dos outros é uma forma de defender a liberdade religiosa! Fico imaginando como seria a sua agressão à liberdade religiosa, então. Na prática, o Charlie Hebdo não faz defesa de liberdade religiosa nenhuma. A chave para entender a opinião de Gérard Biard está na frase "Dizemos que Deus não deve ser uma figura política ou pública, mas sim uma figura privada”. Ou seja, o jornal defende que o discurso religioso seja privado, não público, isto é que fique preso, restrito às quatro paredes das casas das pessoas, enquanto ele tem a liberdade de publicar seu discurso anti-religioso. Liberdade de expressão? O pior é que o governo francês concorda com ele.

Em nome de uma pretensa liberdade de expressão, o Charlie Hebdo praticou um verdadeiro ato de agressão contra a sensibilidade de milhões de pessoas, atacando-as em suas crenças e valores. Mas esta liberdade de expressão é falsa, ou melhor é de mão única. Em 2004 foi promulgada uma lei proibindo o uso de símbolos religiosos em escolas públicas. Veja bem, a lei não está apenas proibindo a presença de crucifixos nas paredes – o que é compreensível, visto que o Estado é laico - mas sim que os próprios alunos não entrem nas escolas se estiverem usando um kipá, um crucifixo ou um shador. Na prática, a França proibiu milhões de pessoas de exercerem a liberdade de expressarem a sua fé. Não estamos falando de proselitismo religioso, mas sim de liberdade de expressão. Um jornal é livre para ofender a fé de um jovem que não é livre para ir à escola portando um crucifixo ou um véu islâmico.

Luc Ferry acaba por deixar isso claro ao afirmar na entrevista que “a França é a separação absoluta da religião e da política: a laicidade é praticamente sagrada”. Chega a ser um contrassenso. Na França o secularismo é sagrado. O sagrado não é.

Aliás, reparou que em todas as matérias publicadas na imprensa brasileira, as charges nunca aparecem? Suponho que seja porque as charges são realmente tão ofensivas,que dificilmente a maioria da população brasileira concordaria com o uso da liberdade de expressão para isso. Especialmente se vissem as charges contra a fé cristã. Se tem estômago, veja alguns exemplos:














Se isto é liberdade de expressão, o Charlie Hebdo expressou seu preconceito religioso, sua discriminação e sua intolerância laica contra a fé milhões de pessoas, muitas delas abandonadas pelo Estado francês. Veja que os criticados nestas charges não são políticos ou os líderes dos grupos terroristas. Não há nesta seleção charges de Osama Bin Laden (embora eles tenham feito, sim), mas sim ataques às crenças de milhões de pessoas, tanto cristãs como muçulmanas. Na prática, o Charlie Hebdo praticou diversos atos de violência intelectual, mas nem todos os agredidos são como os cristãos que dão a outra face.

O mundo ocidental ficou chocado com a reação violenta e injustificada contra o jornal. E se fosse no Brasil? E se fosse um jornal corintiano com charges neste estilo retratando palmeirenses? Alguém acha que o resultado seria diferente? Alguém defenderia no Brasil a liberdade do jornal corintiano de expressar seu preconceito?
Então, por que contra a fé de milhões de pessoas pode?


Para mais informações sobre a questão, sugiro os links abaixo:







terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O Moisés moderno de Ridley Scott


Vi ontem o filme Êxodo: Deuses e Reis, do consagrado diretor Ridley Scott (Blade Runner, Alien, Gladiador, etc.) e apesar da exuberância visual, fica um certo desapontamento no ar.

Scott tem sido um diretor um tanto errático: seus filmes sempre nos enchem os olhos, mas nem sempre a história é bem contada. Em Alien tudo deu certo. Em Prometheus, sua continuação, ficou o gostinho de que ficou faltando algo. Infelizmente, Êxodo está mais para Prometheus do que para Alien. E isto tem tudo a haver com as alterações que o diretor fez tanto na história bíblica quanto na história egípcia. Se você ainda não viu o filme e quer ver, leia o resto do texto por sua conta e risco: tem muitos spoilers neste artigo daqui para frente.

O filme começa de forma convencional, mostrando a data de 1300 a.C. (a data atualmente mais aceita para o Êxodo) narrando a escravidão dos hebreus no Egito por 400 anos. Até aí tudo bem. Mas, de repente, aparece uma cena de uma pirâmide sendo construída. Pirâmide? Em 1300 a.C.? Naquela época não se construíam mais pirâmides, mas sim mastabas – palácios funerários escavados na rocha, no famoso Vale dos Reis.

Daí em diante o filme segue a linha clássica da ficção hollywoodiana colocando Moisés e Ramsés como dois amigos que se amam com irmãos, sendo Moisés o predileto do Faraó. Você já viu isso antes, até mesmo em desenhos animados. Lembra-se do Príncipe do Egito? E é aí que a fraqueza do filme se acentua.

No filme, o velho faraó Horemheb é enterrado em uma tumba monumental cuja entrada é ladeada por estátuas de pedra gigantes. Eu conheço essa tumba... é o templo de Abu Simbel, construída por Ramsés II, quando ele era faraó. Ou seja, ela não existia quando Horemheb morreu, portanto, ele não foi sepultado lá. Então porque o filme tem esta cena historicamente falsa? Porque o filme quis retratar Horemheb como um faraó forte, poderoso e sábio como contraste a Ramsés II, retratado como fraco, inseguro e traumatizado pela falta de demonstração de amor paterno. O problema é que Ramsés não era assim. Ele foi o maior e mais poderoso faraó que o Egito já teve, construindo monumentos magníficos, vencendo os hititas na lendária batalha de Kadesh. Ramsés II era extramente vaidoso e seguro de si, bem ao contrário da representação feita no filme.

Se a figura de Ramsés foi bastante modificada em relação ao que a história do Egito registra, a de Moisés mantém pouca ou nenhuma relação com o texto bíblico. O Moisés do filme é o clássico herói moderno: ético, porém cético, que parte por força das circunstâncias em sua jornada solitária, lutando contra tudo e contra todos, até mesmo contra Deus, e prevalecendo no final. Para satisfazer o gosto popular, Moisés não é um velho: é jovem, não usa um cajado – ele o deixa em Midiã com seu filho - mas sim uma espada egípcia! O Moisés do filme não é um velho homem de fé, mas um um jovem guerreiro confiante em suas capacidades.

Para que Moisés se encaixe neste figurino trechos inteiro do relato de Êxodo tiveram de ser desconsiderados:

1) na Bíblia Moisés não é um herói idealizado, mas possui falhas de caráter: mata um egípcio em uma briga e enterra o cadáver para não ser descoberto. Quando descobrem o crime, foge para Midiã. No filme, Moisés mata um soldado quando este descobre que ele é hebreu e volta normalmente para o palácio. Ele não foge, protege Miriã e é expulso para o deserto por ordem do faraó – bem mais nobre, porém bem mais artificial e fantasioso.

2) no encontro com Deus na sarça ardente, no livro do Êxodo Deus se revela como o Deus de seus antepassados e lhe dá uma ordem detalhada do que ele deve fazer para libertar seu povo do Egito. Inclusive lhe dá provas de que estará com ele fazendo sinais com seu cajado. Já no filme, Deus diz muito pouco, quase nada, de quem é e do quer que Moisés faça para libertar seu povo. Pior: Moisés diz que é um pastor e Deus diz que não precisa de um pastor, mas sim de um general. Como é? Qualquer pessoa que tenha estudado minimamente a Bíblia sabe que o padrão divino de liderança é o pastor de ovelhas – Moisés era pastor, Davi era pastor, Jesus se apresentava como “o Bom Pastor”. No Êxodo vemos Moisés pastoreando ovelhas no deserto durante 40 anos como uma espécie de preparação que Deus lhe dá para poder guiar seu enorme povo pelo deserto e no filme, vemos Deus dizendo que não quer um pastor de ovelhas?

3) Na Bíblia, o velho Moisés reluta em aceitar a sua missão a ponto de irritar Deus. No filme, aceita imediatamente. No texto bíblico, ele volta para o Egito com esposa e filhos. No filme, ele volta sozinho. Na Bíblia, ele faz sinais com seu cajado. No filme ele faz atentados com um grupo guerrilheiro. Na Bíblia Moisés nunca viu o rosto de Deus, embora conversasse com ele face a face. No filme, Deus sempre aparece a Moisés como uma criança. Uma criança aparentemente mimada e sem sentimentos mais profundos pelo povo hebreu.

Por que tantas mudanças? Qual o seu objetivo ao descaracterizar assim não apenas a Bíblia como a história egípcia? Diretores não resistem a tentação de, ao filmarem histórias já contadas anteriormente, de darem o seu toque pessoal ou, como eles dizem, a sua “visão” da história, das metáforas e alegorias que elas encerrariam. Muitas vezes o resultado é não apenas inferior como também uma descaracterização da obra original. E qual teria sido a visão de Ridley Scott? Acredito que o filme seja o retrato de nossa época. O homem moderno sonha em ser como o Moisés do filme: senhor de si, guerreiro, forte, autossuficiente, com seu próprio senso de justiça. Não há espaço para um Deus Soberano sobre tudo e sobre todos, inclusive sobre a sua vida mortal. E quando se defronta com esse Deus o vê como uma criança mimada, uma poderosa criança mimada e caprichosa. Um Deus com “d” minúsculo, diante do qual se pode irar, retrucar, discutir. Um deus que 'um reflexo de si mesmo.

Já o Deus que o livro do Êxodo descreveu no encontro com Moisés é diferente, bem diferente. É um ser imaterial, sem forma, que não pode ser contido ou ignorado. Que tem plena consciência de quem é: o Ser Perfeito e Imutável, descrito no nome que se apresentou a Moisés: Ehyeh Asher Ehyeh: Eu Sou o Que Sou (em hebraico: אֶהְיֶה אֲשֶׁר אֶהְיֶה). O Ser infinitamente puro que disse a Moisés quando este se aproximou no monte Horebe: “tira as sandálias dos teus pés porque o lugar em que te encontras é uma terra santa.”

O Moisés do Êxodo compreendeu a sua pequenez diante do Ser que o comissionava e diante da missão para o qual era comissionado. Por isso foi escolhido. Ele era apenas o instrumento, Deus era o ator por trás da história que libertaria seu povo. O ceticismo e a vaidade de Ridley Scott não lhe deixaram ver a riqueza e a veracidade da narrativa do Êxodo e o forçaram a recontar a história de uma forma que fosse mais palatável para uma plateia igualmente cética e vaidosa. Por isso ele fracassou. Ao recontar a história de Moisés como um herói idealizado, perdeu-se a dimensão humana do personagem. Falta emoção ao filme. Irônico: sua vã tentativa de fazer uma descrição “verossível” do Êxodo, resultou em um uso indiscriminado de mistificações, deturpações e omissões, as quais acabaram por mostrar como o velho texto bíblico, ao descrever os personagens, suas falas e ações, é muito mais lógico, isento e realista do que qualquer filme ou obra de ficção posterior. Por quê? Porque descreve pessoas e fatos reais e não personagens idealizados. Obrigado, Ridley!


Uma dica Ridley: ao invés de ter contratado o Christian “Batman” Bale para o papel, não teria sido melhor o Ian “Gandalf” McKellen? Não me leve a mal, Christian Bale é um excelente ator. Mas imagine a cena: ao invés do Moisés a cavalo e de espada na mão cavalgando sobre o leito seco do Mar Vermelho, poderia estar pé de cajado na mão à la Galdalf gritando para o exército do faraó: “You shall not pass!” Que tal, hein? Não? Bom, deixa pra lá. Foi só uma sugestão.